sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sobre "Remontemos de Foucault a Spinoza"

Encontro do dia 12 de maio de 2010

Organização do texto: Jefferson Voss

_RESUMO_

Texto-base: PÊCHEUX, Michel. Remontemos de Foucault a Spinoza. (Tradução de Maria do Rosário Gregolin) Edição original: PÊCHEUX, Michel. Remontons de Foucault à Spinoza. In: L’Inquietude du discours. Textes Choisis par D. Maldidier. Paris: Cendres, 1977.

Texto de 1977, dado no entremeio das publicações de Les Vérités de La Palice[1] (1975) e L’etrange mirroir de l’Analyse du Discours[2] (1981), Remontemos de Foucault a Spinoza sintetiza os ideais políticos que atravessaram os trabalhos de Michel Pêcheux desde sua incursão na filosofia da linguagem e da sua fundação da análise do discurso. Pêcheux expõe, nesse texto, suas crenças no que diz respeito ao fazer científico e sua relação com a prática política. A fim de firmar sua posição, Pêcheux toma para análise o Tratado Teológico Político de Spinoza e a Arqueologia do Saber de Michel Foucault. O texto apresenta certo tom de crítica a Foucault, uma vez que, segundo Pêcheux, este se coloca numa frente historicista que não se posiciona de forma militante na luta de classes e que rejeita a categoria de contradição. Ao mesmo tempo, o texto começa a tecer uma retificação que já havia deixado marcas em Les Vérités de La Palice: Pêcheux passa a considerar de modo central a categoria de heterogeneidade discursiva e a des-instrumentalizar a análise do discurso de seu aparato científico/tecnológico provindo da linguística.

Pêcheux inicia sua fala argumentando sobre o estatuto dos cientistas da linguagem na prática política, enfatizando, em especial, o caso dos analistas do discurso. Segundo ele, a análise do discurso político deve estar estreitamente presa a uma posição na luta de classes: “Não podemos pretender falar de discursos políticos sem tomar simultaneamente posição na luta de classes, já que essa tomada de posição determina, na verdade, a maneira de conceber as formas materiais concretas sob as quais as ‘idéias’ entram em luta na história” (PÊCHEUX, 2010, p. 01)[3].

Passada essa fase introdutória do texto, em que, diga-se de passagem, Pêcheux elenca o objetivo principal de sua intervenção – discutir sobre a importância do “tomar partido” para a prática do cientista, o autor pontua então brevemente aquilo que, segundo ele, seriam as várias correntes da linguística e seus posicionamentos na luta de classes. A primeira delas é batizada de lógico-formalista, ou seja, aquela que se debruça sobre as gramáticas e que possui uma prática a-histórica, neutralizando a participação da história na existência da língua e apagando, dessa forma, a luta de classes. Quanto à segunda corrente, se trata da de mudança social na história, segundo a qual as línguas são organismos vivos e históricos que nascem, se desenvolvem e, eventualmente, morrem; quando à posição na luta de classes, Pêcheux a qualifica, dessa vez, como historicista, na medida em que contempla a essência social do homem e de sua evolução na história, mas também não trata do teor político que envolve a utilização da língua – o que faz com que essa corrente também não tome partido na luta de classes. A terceira corrente tratada por Pêcheux é a dos riscos da fala. Ao que parece, essa corrente é a que estuda a língua segundo seu caráter dialógico, em que haveria um duelo (afrontamento) entre sujeitos posicionados[4].

Pêcheux tenta mostrar que as três práticas das três correntes fazem com que o teórico se sobreponha ao político. No caso da primeira e terceira corrente, há uma posição burguesa, e, no caso da segunda, uma posição reformista. Temendo essa dominação do caráter político da análise de discurso pelo teor universitário, Pêcheux propõe um “novo percurso em torno do marxismo” em que se volte às origens e se explicite os casos em que o fazer político esteja, ou não, aliado ao tom científico do trabalho acadêmico. Os nomes escolhidos para ilustrar ambos os casos são os de Baruch Spinoza e Michel Foucault.

Primeiramente, Pêcheux compara os dois filósofos em quatro pontos, a fim de mostrar que ambos se relacionam com o estudo do discurso. O primeiro ponto concerne à relação que estabelecem, Foucault e Spinoza, com a linguística. Pechêux mostra que ambos caracterizam o sentido como algo histórico e a significação como propriedade da língua. O segundo ponto se refere à relação entre enunciados, uma vez que tanto Foucault quanto Spinoza contemplam esse tema. O terceiro ponto é sobre a determinação do discurso pelas relações de lugar. Sobre esse ponto, Foucault trabalha as modalidades enunciativas. E um quarto ponto se refere ao regime de materialidade do imaginário. Para Spinoza, a posição ocupada pelo indivíduo flagra mudanças na forma como ele concebe o fenômeno social e o discursiviza e, por outro lado, para Foucault, é o campo de utilização do enunciado e de sua relação com outras proposições que mudam a concepção humana sobre a proposição. Pêcheux logo adverte que mesmo havendo certas semelhanças entre os dois pensamentos, há muito mais uma grande diferença: “pode-se dizer que com os meios teóricos de seu tempo, Spinoza avança lá onde Foucault permanece, hoje em dia, um pouco bloqueado” (PÊCHEUX, 2010, p. 07). O posicionamento de Pêcheux não fica por aí, ele logo se explica: “o trabalho de Spinoza constitui uma espécie de antecedente de uma teoria materialista das ideologias, sob uma forma rudimentar que contém, entretanto, o essencial, a saber, a tese segundo a qual quanto menos se conhecem as causas, mais se é submetido a elas” (PÊCHEUX, 2010, p. 08).

O primeiro ponto que denota uma certa “quedinha” de Pêcheux por Spinoza é seu rascunho primeiro de uma teoria materialista. Mais adiante, Pêcheux também pontua o fato de Spinoza preliminarmente trabalhar com a categoria de contradição. Spinoza mostrou que o “axioma de identidade” (“Se um predicado é verdadeiro para um objeto, ele é verdadeiro para tudo o que é idêntico a esse objeto, independentemente da expressão utilizada para referir a esse objeto”, Spinoza apud Pêcheux) não funciona para a categoria de ideologia. Isso sustenta a tese principal de Pêcheux quando da tecelagem do conceito de formação discursiva: o sentido das palavras mudam segundo a posição ocupada pelos indivíduos no jogo da luta de classes (na relação dessa posição com uma ideologia e na oposição a outras ideologias).

Foucault (“No meio do caminho tinha uma pedra”...) é quem fala muito e faz pouco: não trabalha com a categoria de contradição e faz um “marxismo paralelo”, intitulado, por Pêcheux, “reformismo teórico”. Dá-se a entender que o modo como Foucault concebe a formação discursiva por meio da regularidade dispersa admite, segundo Pêcheux, homogeneidade do discurso de uma dada época. Pêcheux entende, então, que deve-se conceber, ao invés dessa homogeneidade, a heterogeneidade de posições que entrecortam uma ideologia quando esta é atacada internamente pelas posições dominantes – “uma dominação que se manifesta na própria organização interna da ideologia dominada”.

Pêcheux ainda critica a simples tomada do conceito de formação discursiva para se criar tipologia de discursos organizados segundo posições homogêneas (e note-se que ele acusa Foucault de sustentar essa posição (!!!)). Para Pêcheux, “É necessário, ao contrário, definir a relação interna que ela estabelece com seu exterior discursivo específico, portanto, determinar as invasões, os atravessamentos constitutivos pelas quais uma pluralidade contraditória, desigual e interiormente subordinada de formações discursivas se organiza em função dos interesses que colocam em causa a luta ideológica de classes, em um momento dado de seu desenvolvimento em uma dada formação social” (PÊCHEUX, 2010, p. 011-2).

Pêcheux avança. Isso é sabido, principalmente comparando-se esse texto aos anteriores (antes de 1975). Cada vez mais se permite conceber a heterogeneidade como constitutiva dos discursos. Maldidier flagra, então, aquela aproximação de Pêcheux com Authier (dizem as más línguas que se aproximaram até demais!). Contudo, nesse texto, Pêcheux peca na leitura da obra de Foucault, parece não entender os objetivos de Foucault e a abrangência de suas análises: era um projeto bem maior! Resta-nos entender que Pêcheux retifica cada vez mais suas posições, até começar a perceber em Foucault um aliado. Isso pode ser checado em Só Há Causa Daquilo que Falha ou o Inverno Político Francês: início de uma retificação (anexo à edição inglesa de Les Vérités de La Palice) e em Discourse: Structure or Event?, conferência de 1983 pronunciada nos Estados Unidos no ano de seu suicídio.

Se a prática científica deve ser tão militante a ponto de ser também prática política, como pode o homem se despir de sua entrada na história para falar dos objetos que ele próprio constitui e que também o constituem? Fica o problema. Será que Pêcheux o resolveu?



[1] PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi.

[2] PÊCHEUX, Michel. O Estranho Espelho da Análise do Discurso (Prefácio). In: COURTINE, Jean-Jaques. Análise do Discurso Político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EDUFSCar, 2009. pp. 21-6.

[3] Nota para discussão: Essa tomada de posição não acaba implicando uma leitura ideologizada do texto/discurso em análise?

[4] Nota para discussão: Nesse ponto, parece que Pêcheux retoma e rediscute as altercações de Bakhtin sobre o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista, criticando também o próprio dialogismo proposto por Bakhtin.

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